202208031609 - Escrita 01

#escrita #tormenta

Tarsius Aurelius Ultimus


O Monastério de Santo Otto era conhecido por ser uma das visões mais bonitas da cidade de Fremen, embora poucos tenham ido até lá, devido ao seu difícil acesso nas montanhas. O monastério também era conhecido pela sua cerveja, que era distribuída pelos monges uma vez por lua cheia em apenas dois dos mais notáveis pubs de toda a cidade. A conhecida Cerveja de Otto era a bebida de nobres e reis, e tem sido assim por mais de 100 anos.


Tarsius bufou mais uma vez, o ar gélido deixou suas grandes narinas em uma cortina de fumaça branca.
"Só mais um pouco."
O monastério já se apresentava à frente proximo ao topo da colina, fazendo um contraste forte do mármore branco contra o céu permanentemente acinzentado. as ruelas estreitas de cascalho que subiam a montanha em curvas acentuadas não foram um obstáculo fácil para os grandes cascos do Minotauro.
As portas do monastério eram enormes até mesmo para sua estatura grandios. A madeira adornada em ouro com intrincados detalhes florais. Até mesmo pelo exterior, todo esse lugar certamente recebia manutenções constantes. Nenhum risco ou marca de uso à mostra, uma obra impecável, mais uma mostra do delicado trabalho dos monges trapistas da região.
As argolas da campainha mal cabiam em suas mãos, e segurando as duas, bateu com força algumas vezes.
Não precisou esperar muito até ouvir um rangido do outro lado da porta. Por instinto, Tarsius se afastou ligeiramente.
"Afaste-se, afaste-se! você não quer ficar nesse frio." Disse uma voz fina e apressada vinda de dentro.
Sem tirar os olhos da porta Tarsius deu alguns passos para trás. Deixando que a porta se abrisse a sua frente.
"Entre, não nos deixe congelar, venha!"
Agora Tarsius pôde ver o velho monge, era baixo, calvo e usava grandes robes marrons que parecia ser o uniforme daquele lugar com uma corda verde amarrada na cintura destacando ainda mais sua grande barriga.
Enquanto entrava, Tarsius notou vários monges passando vagarosamente por trás, olhando para ele e saindo em pares aos cochichos.
O monge fitou Tarsius algumas vezes de cima a baixo, esperando uma introdução.
"Faz tempo que não vemos um de vocês por aqui."
"Faz muito tempo que meu povo deixou as montanhas."
"Olha, amh.." - Começou o monge
"Tarsius"
"Olha, Senhor Tarsius, não temos costume de carregar machados de guerra dentro do nosso monastério, você poderia..." - hesitou - "deixar o seu ali? Ah, me chamam de Mikail"
Relutante, Tarsius removeu seu machado de guerra e o apoiou ao lado da porta de entrada, não sem antes fazer uma nota mental da sua localização e posição exata.
"Mas então Sr. Tarsius, o que faz aqui?"
Tarsius buscou no bolso da calça uma insignia real que parecia pequena de mais dentro de suas enormes mãos. "A Milícia do rei recebeu relatatos de contrabando da sua mercadoria nas partes baixas da cidade." - Tarsius fez uma breve pausa e olhou ao redor - "Curiosamente, ao mesmo tempo que alguns desaparecimentos começaram a ser reportados na mesma região." A voz retumbante do minotauro, e sua expressão curta e direta fizeram com que todos os monges à volta parassem e ouvissem atentamente.

A cada nova palavra, a expressão do monge alternava entre séria e assustada. Quase que de forma indecisa.

"Suspeitamos que os Fantasmas Sangrentos estejam envolvidos, mas enquanto isso, preciso de provas." Terminou a frase de forma abrupta, como que para evitar perguntas e antes mesmo de concluir a frase, começou a andar.
O monge, agora agitado, seguia de perto.
Descendo os poucos degraus do salão de entrada, Tarsius se deparou com um pequeno bosque, no coração do mosteiro. Ao centro, uma estátua de Santo Otto, gordo e sorridente com uma caneca de cerveja sentado no topo de um barril. Ao lado do santo, algumas árvores de pequeno porte e em todo o perímetro um pequeno muro de pedra repleto de arcos de mármore demarcando as entradas para as diversas partes do mosteiro.
Curioso com a visão da imagem do Santo, Tarsius parou para observar por um momento.
"Nosso padroeiro, Santo da Alegria Compartilhada, criador da receita da nossa cerveja."
Voltando a si, Tarsius voltou a andar pelo pequeno corredor lateral.
"Diga monge, vocês notaram o desaparecimento de alguns barris da sua bebida?"
"Não, não senhor." - O monge respondeu rapidamente e aproveitou a abertura para continuar -"Senhor, está frio aqui, vamos para um lugar mais aquecido"
Ao se virar, o minotauro teve a ligeira impressão de que todos os monges do monastério, pelo menos aqueles que ele conseguia ver, resumiram as suas atividades ao mesmo tempo; como se o estivessem observando enquanto ele era guiado pelo velho Mikail.
"Ah, meus modos. A subida deve ter sido dura Sr. Tarsius, gostaria de uma caneca da nossa cerveja especial? Acredito que já devemos ter um caldo também no forno, está quase na hora de nossa janta". Enquanto falava, o monge acenava para três outros membros da ordem já irem executando seus comandos. Dois deles apressaram-se para a cozinha, enquanto o terceiro descia para o pátio e tornava a virar em um corredor escuro, perdendo-se de vista.
"Ha, você não parece ter me dado opção velho monge", Tarsius sorriu resignado. "Mas tenho que ir, meus superiores notarão que não compareci ao meu turno hoje."
O monge se pôs em frente ao minotauro, com a voz trêmula repetiu o convite.
"Mantenha essa visita extra-oficial Mikail, assim que conseguir as devidas autorizações, venho com mais tempo e jantarei com os senhores"
Visivelmente trêmulo, Mikail fez sinais para mais dois de seus companheiros, que dessa vez, desapareceram na porta que levavam para o salão de entrada.
"Sr Tarsius, uma cerveja apenas, para se hidratar, a montanha é traiçoeira", agora trêmulo e nervoso. Os olhos de Mikail apontavam para todas as direções, procurando desculpas, algo que fizesse o Minotauro ficar apenas mais um instante.
Ao notar o nervosismo do monge, Tarsius também notou um movimento rápido em suas costas, algo inesperado. Afinal não se espera que monges corram em sua morada. O movimento foi quase imperceptível senão pela sua visão periférica. Com sua mãozorra, o Minotauro removeu Mikail da sua frente e rumou ao salão de entrada, dando a volta na estátua do monge gordo que estranhamente parecia que seus olhos estavam acompanhando seus passos. Ao encarar a estátua gorda Tarsius teve um calafrio e com o passo rápido entrou no salão.
"Sr Minotauro...", guinchou o velho monge de forma estridente.
Ignorando o monge e ainda andando em frente, Tarsius levou um segundo para sua visão se ajustar a baixa luminosidade do hall. Seus olhos foram instintivamente levados a posição exata de seu Machado de Guerra, que não estava mais lá.
Atrás ouviu um bater forte de madeira em pedra. Ele se virou e a porta de saída do salão tinha se fechado pelo lado de fora. Por instinto, investiu contra a porta com seu ombro e chifres. Bateu forte, sentiu o musculo do seu ombro reclamar de dor, e viu uma lasca de seu chifre partir. Estava trancada por fora.
Voltou-se para o outro lado. Não via ninguém, estudou o espaço ao seu redor, deixando as costas sempre viradas para uma parede.
O salão era alto, com uma cúpula abobadada adornada de pinturas de festas e orgias. Assim como o jardim, o salão também era composto por arcos laterais que formavam os pilares da estrutura, nas paredes dos arcos, tochas fracas iluminavam o ambiente com sua luz bruxuleante. Em cima dos arcos, uma pequena galeria envolvia todo o salão, e nessa galeria mais algumas tochas, sinalizando entradas e passagens.
O ambiente, antes convidativo e amigável, agora era assustador e ameaçador. A luz das tochas não auxiliavam a visão, as sombras geradas pelo movimento das chamas confundiam e o cheiro de fumaça mascarava o que quer que pudesse estar escondido nas galerias superiores.
Tarsius não tinha treinamento para combates de curto alcance. Sempre confiara no seu machado de guerra e sua força bruta. As batalhas que participara quando jovem eram sempre batalhas campais, com grandes exércitos. Agora na milícia, vencia pela intimidação. Mas nesse ambiente, era ele que estava intimidado.
Decidiu percorrer o perímetro próximo das paredes, evitando o centro do salão à todo custo. Assumiu uma postura de luta e tentou se aproximar da porta exterior. Deveria haver uma forma de abrí-la por dentro. Deixou seus sentidos aguçados e alcançou a parede lateral do salão, agora estava embaixo de uma das galerias. Dali, ouviu o farfalhar das robes dos monges se movendo. Não era apenas um, e era rápido. Mais próximo do que ele julgava possível.
Com um sobressalto, olhou ao redor.
Sombras.
Movimento.
Sombras.
Com o passo cauteloso, seguiu andando próximo a parede. Hiper-alerta de seu ambiente, ouviu um rangir de pedras e sentiu uma fisgada na perna direita.
Pânico.
Sua visão ficou turva por um segundo. As sombras se tornaram mais compridas.
Continuou em frente, outro arrastar de pedras, mais uma fisgada, dessa vez nas costelas, o Minotauro caiu pesado.
Viu muitas sombras se aproximarem ao mesmo tempo, mas já não tinha mais forças, sua ultima visão foi o rosto do monge velho, assustado e sorridente com os olhos vermelhos e esbugalhados.


Tarsius começou a recobrar seus sentidos e sentia seu corpo letárgico, se recusando a responder. Com esforço, virou sua cabeça e viu-se numa jaula. Sentiu uma dor aguda no topo da cabeça e com dificuldade, levou sua mão até seus chifres, que não estavam mais lá. Haviam sido serrados. A dor, deixou de ser física, por um momento esqueceu de verificar os ferimentos, esqueceu de tentar se localizar e entender a sua situação. Tarsius era só dor. Seus chifres, o símbolo de sua raça, motivo do seu orgulho, sinal de sua retidão e hombridade, não estavam mais lá.
Tarsius sucumbiu ao sofrimento, abandonou sua esperança e desejou ser levado pelos deuses.
Voltou a si quando ouviu um grito humano. Um desespero que antes ele nunca compreendera e julgava nos humanos, agora ele compartilhava.
Olhou ao redor e viu várias outras jaulas, algumas ocupadas, outras apenas sujas. O cheiro de decomposição era nauseante e dominava o ambiente. No centro daquilo que agora parecia uma prisão, um poço.
Operando o mecanismo do poço, notou a silhueta de um homem gordo. A luz do ambiente não deixava Tarsius ver mais do que vultos ao seu redor. O cheiro putrefato ao seu redor havia neutralizado seu olfato apurado, sem chifres e sem olfato o Minotauro se sentia indefeso. Fraco e ainda sob a influência do veneno, Tarsius caiu novamente inconsciente.
Ao acordar, sentiu a dor de onde tivera seus chifres, uivou de dor e raiva. Olhando em frente viu novamente o homem gordo, dessa vez, sentado num banco de fronte a sua jaula. O homem não era velho, mas era gordo e apresentava um sorriso doentio. Seus olhos púrpura já haviam deixado a lucidez pra trás à muito. Uma centelha de reconhecimento passou pela mente de Tarsius e no momento da lembrança, sobresaltou-se.
"Vejo que me reconheceu, Minotauro! Quase achei que teria que me introduzir."
"Otto" - Balbuciou o Minotauro abalado.
"Veja, nunca usei sangue de Minotauro nas minhas receitas. Acredito que terei que fazer alguns experimentos." - Abrindo um sorriso largo, levou a mão à sua bolsa lateral. Retirou e analisou com calma um dos chifres de Tarsius.
Com a visão, Tarsius rugiu e investiu contra as grades que o prendiam. Não conseguiu nada além de mais dor.
"Seremos grandes amigos, Tarsius dos Minotauros. Humanos duram cerca de 1 a 2 anos antes de sucumbirem sob meus cuidados... Já um Minotauro... Isso pode ser interessante."
Com agilidade quase inacreditável, o homem gordo avançou sobre o Minotauro, com uma faca, arrancou-lhe sangue, o qual recolheu com uma toalha limpa e deixou a cela, sempre sorrindo.


Era amplamente reconhecido pela nobreza, e nos últimos anos por todo o povo de Arton, que os melhores lotes da cerveja de Santo Otto foram produzidos nos últimos 10 anos. O mesmo período desde o ultimo desaparecimento na cidade baixa, e coincidentemente o aniversário do ultimo avistamento de um capitão da milícia local, Tarsius Aurélius Ultimus, o primeiro Minotauro a alcançar essa posição na corporação.


A história de Tarsius nunca foi contada, e ninguém sabe o que aconteceu com ele. Mas existe uma lenda, essas que os adultos contam para as crianças para educar ou assustar. Mas dizem que na floresta no sopé da montanha vaga um Minotauro com chifres serrados, louco, de olhos púrpura que brilham como fogo.